Fotografia @Sara Trigo |
Há zangas tão consagradas, que o tempo se encarregou de ocultar a sua
origem, tornando-as num dado adquirido inquestionável e eliminando qualquer
memória comum, como se nunca tivesse sequer existido alguma. As costas voltadas
são, então, o novo estado de ser.
Não é o caso desta que, não consumindo ativamente Sofia, a corrói
pouco a pouco, quase sem se deixar notar. Com o tempo, a causa foi-se desvanecendo
e todas aquelas falhas que na altura foram suficientemente significativas para
afastar Mena da sua vida são, agora, memórias esbatidas de uma tempestade
instalada numa chávena de chá. E aquele rancor que a fez desligar o telefone
decidida a nunca mais dirigir a palavra à (então) amiga foi substituído por uma
outra sensação desagradável de perda e de ausência permanente – a saudade.
Saudade… Mena adorava essa
palavra, como qualquer português que ache que se preza. Com efeito, assentava
bem na sua alma nostálgica, religiosa e patriótica, na figura da filha dedicada
à família e agradecida a tudo e a todos. Nunca chegara a compreender aquela
adoração pelos pais, que nada mais tinham feito do que ser os melhores pais que
sabiam, à semelhança de quaisquer outros. Nunca chegara a encarar com bons
olhos a dedicação quase total aos problemas dos amigos, tomando-os em parte como
seus, sofrendo com eles e sentindo o alívio da sua resolução.
Sem o ter jamais reconhecido conscientemente, Mena era a melhor pessoa
que conhecia. E era demasiado boa pessoa para Sofia lhe aceitar os erros. Acima
de tudo, eram as ausências que atacavam Sofia que, desprovida de Mena, era
dominada pela pessoa carente que, no fundo, era.
Lembra-se das últimas palavras que lhe disse, da entoação com que as
proferiu e do resultado delas.
Foi numa manhã de dezembro aleatória, enquanto deambulava pelo centro
da cidade à procura de um presente de Natal para o pai, que lhe pareceu vê-la.
A claridade filtrada pelas nuvens carregadas, nas quais se confundia o fumo das
castanhas assadas vendidas nos carrinhos metálicos, cegava os olhos ainda mal
despertos, em choque com a separação do sonho.
Estugou o passo e seguiu a cabeleira loura que a conduziu até à
entrada de uma loja de roupa. Estacou, em choque. Já ali tinham estado as duas,
quando Sofia aconselhara Mena na compra de um vestido para o casamento do qual
seria madrinha e que, anos mais tarde, acabaria por ser aquele com que Mena
testemunharia, também, o casamento de Sofia.
Estava ainda especada junto à montra, com a confusão estampada no
rosto, quando Mena regressou. Estavam frente a frente pela primeira vez em
demasiados anos e Sofia cruzou os braços atrás das costas para controlar o
impulso de a abraçar.
Por fim, segurou-lhe na mão, puxou-a para um canto e expôs-lhe como
apenas recentemente fora capaz de se pôr no lugar dela, de pensar de acordo com
a sua perspetiva e de ter uma nova clarividência dos acontecimentos.
Reconheceu, para Mena e para si mesma, que aos vinte e quatro anos, achando-se
detentora de um conhecimento imenso e soberano, era, na verdade, demasiado
pouco adulta para ser capaz de estabelecer empatia com tudo o que diferisse de
si. Era uma crítica muda; o braço de ferro que afastava o que não fosse
semelhante a si.
- Venham almoçar lá a casa – pediu. – Tu, o teu marido e o teu bebé.
Mais do que um convite, era um pedido, uma admissão de humildade e uma
tentativa de corrigir os seus erros e foi com surpresa e apreensão que a ouvira
aceitar. Estava preparada para a recusa, para que tudo se mantivesse igual. Não
estava, de maneira nenhuma, pronta para agir perante a abertura que encontrara.
Desistiu da busca da prenda, passou no mercado e correu para casa.
Sabia exatamente o que ia cozinhar.
Picou seis dentes de alho e salteou cogumelos portobello com chouriça de sangue. Enquanto a o linguini cozia, tostou lâminas de
amêndoa, ralou um pouco de parmesão para uma taça e bateu três ovos. Escorreu a
massa que misturou com os cogumelos e a chouriça, temperou com endro e, por
cima, deitou os ovos. Mexeu bem. Colocou tudo numa taça, salpicou com as
lâminas de amêndoa e o queijo ralado.
A campainha tocou no instante em que colocava o almoço na mesa.
Apressou-se a tirar o vinho rosé do frigorífico e foi abrir a porta,
agarrando-a com força para controlar os nervos.
Não conseguiu esconder a sombra de desilusão quando viu sair apenas
Mena do elevador. Acedera a alguma aproximação, mas mantinha uma barreira
clarividente. Protegia a família, o presente e o futuro. Eram apenas Mena e
Sofia, uma ligeira versão atual do passado.
- Cheira bem – comentou Mena, encaminhando-se para a sala.
Sentaram-se as duas, sem saber por onde começar.
Serviram-se e provaram a primeira garfada. Partiriam daí.