sexta-feira, 12 de agosto de 2016

De regresso a casa

Encostou a cabeça no encosto do banco, entregando-se ao turbilhão de sensações que a acossavam naquele momento de aparente tranquilidade. Com as luzes interiores apagadas, o avião cortava a noite de final de verão com uma luz intermitente vermelha, desvendando retalhos de edifícios, estradas, veículos e do mar sereno.
Ana guardava em si duas semanas de felicidade e descanso que lhe tinham devolvido a paz de espírito. No entanto, naquela noite de domingo, horas antes de, por fim, regressar à rotina, voltava a si a sensação de ausência e de solidão que a perturbava de cada vez que entrava novamente na sua nova casa, e que imaginava ser transversal a qualquer expatriado.
A angústia era, como sempre, intensificada no momento crítico da aterragem. Fechou os olhos com mais força do que gostaria, fincou as mãos nos apoios dos braços e, com o coração aos pulos fortes no peito, esperou pelo impacto que não tardou a chegar.
Libertou o ar do peito, abriu os olhos e sorriu. Por alívio, sem dúvida, mas por qualquer outra razão que não saberia admitir.
A noite estava quente, embora o tempo tivesse arrefecido ligeiramente. Era mais fácil respirar.
Arrastou a mala pelo chão rugoso da pista, ansiosa. Cada vez mais ansiosa. Sentia um frio agradável, um misto de medo e de entusiasmo, crescer-lhe no estômago. Apercebeu-se, então, que acelerara o seu passo já de si acelerado.
Sorriu, porque podia. Porque ninguém a via e porque queria.
Viu-o imediatamente ligeiramente afastado da multidão que esperava nas chegadas. Acreditara que ali estaria, ainda que não tivessem combinado nada. Nunca lho pediria, nunca o deixaria saber que não havia nada que quisesse mais do que vê-lo, antes ainda de ver a cidade.
Combateu o sorriso que tentava rasgar-se na sua boca. Não podia permitir que lhe visse essa fraqueza. Não podia deixá-lo perceber o efeito que a sua presença provocara nela, não se dando conta de que a velocidade a que andava a traía.
Abraçou-o sem pensar, sentindo-o pousar-lhe um beijo demorado no rosto. Soube bem, como se nunca tivesse sido beijada na vida. De olhos fechados, ouvia apenas a sua própria respiração ofegante e aspirava apenas o perfume dele, evidentemente acabado de pôr. Essa evidência reconfortou-a.
Sentada no carro dele, enquanto lhe observava pelo canto do olho os movimentos de condução, Ana permitiu-se sorrir. Estava em casa.

quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Dormência

Tenho tanto sono...
O relógio marca apenas 23h45, chegámos aqui nem há meia hora. Talvez devêssemos ter feito uma sesta antes de vir. Ainda vou adormecer aqui em pé.
Estou a transpirar, mas não posso ter calor. A noite está gelada, está toda a gente de casaco vestido, não posso ter calor. Mas não aguento, tenho de me despir.
Onde ponho o casaco agora? Não tenho força para o segurar nos braços... há um formigueiro que me entorpece, quase como uma anestesia geral. Será que fui drogada?
Abrir os olhos, respirar e manter a cabeça erguida. Respirar ar fresco.
A minha barriga! Dói tanto... Será que vou vomitar? Ou pior...! Como é que corro daqui para a casa de banho? Não há nenhum caminho livre, vou ter de me aguentar aqui. São só mais umas horas.
Preciso de me agarrar a qualquer coisa. A ele? Não, a ele não. Está a dançar e... a ele não. Às grades. Seguro-me às grades para não perder o equilíbrio.
- Estás bem? - ouço-o perguntar muito lá longe, mas sou ainda capaz de detetar a nota de desdém com que me fala.
Consigo apenas abanar a cabeça que me cai por entre os braços estendidos, as mãos fincadas nas grades para não cair ao chão. Tento erguê-la, mas sou novamente vencida pelo peso da minha própria cabeça. As costas desistiram e estou já completamente dobrada em direção ao chão. De alguma forma, as minhas mãos conseguem ajudar-me a debater-me com todo aquele entorpecimento.
Dou então conta de que não vejo nem ouço nada e começo a entrar em pânico. Se calhar vou desmaiar. Abro os olhos, que pousam nos pés dele: continuam a dançar.
Ergo novamente a cabeça, mas as minhas energias esvaíram-se do meu corpo numa questão de rápidos segundos e estou prestes a entrar em contacto com o chão.
Espero sentir uma mão dele a segurar-me, suplico-lhe mentalmente que me pegue ao colo e me liberte daquele sofrimento atroz que me aterroriza. Percebo que parou de dançar, inclina-se sobre mim sem me tocar e pergunta novamente:
- Que é que foi?
- Não sei! - consigo gritar, quase em pânico. A cabeça lateja e, ao mesmo tempo, parece completamente vazia. Os olhos rodopiam e estou cada vez mais zonza. Acho que balbucio alguma coisa, mas ele tornou a afastar-se e retomou a sua dança.
Estou prestes a desistir e a soltar as mãos das grades quando o segurança se aproxima dele e lhe pergunta:
- O que se passa?
Ouço-o responder:
- Não sei.
Sem parar de dançar.
O segurança puxa-me firme mas delicadamente os braços para cima até conseguir que os nossos olhos se encontrem. Pergunta-me se quero que me tire dali.
Olho para ele, egoisticamente dançarino, e vejo o esgar reprovador com que me olha.
Há um medo maior e crescente que se apodera de mim.
Aceno com a cabeça e sou levada em braços para longe da multidão alheia ao que ali se passa ou, provavelmente, assumindo que é mais um caso de intoxicação alcoólica.
Assim que os meus pés pisam o chão livre, a cabeça volta ao seu peso normal, recupero a visão e a audição e tremo de frio.
Bebo uns golos de água e encontro-o lá atrás, longe do palco e da confusão. Parece contrariado. Chateado? Não pode ser. Preocupado, se calhar.
Aproximo-me dele envergonhada, sem saber como reagir. Procuro-lhe a mão, mas retira-a, fingindo ir nesse preciso instante compor o cabelo.
- Que foi? - pergunto, por fim, tentando mostrar-lhe que já passou e que fiquei bem.
Não olha para mim e começa a andar. Acelero o passo para o acompanhar.
- Que foi?! - questiona quando, finalmente, para. - Foi que estás sempre tão preocupada com tudo, tão ansiosa, tão stressada que não consegues estar um bocadinho tranquila ao meu lado. E tinhas de escolher logo o momento do concerto para te dar um ataquinho de ansiedade. Perdemos um bom lugar!
Abro os olhos em alvo, estupefacta com tamanha estupidez.
- Achas que isto foi por tua causa?
- Tenho a certeza - atirou.
Eu não sei o que foi isto nem o que o motivou, mas aproveito a deixa dele:
- Se tens a certeza, talvez devesses então questionar as tuas atitudes.
Vira-se de frente para mim, mostrando um sorriso zangado:
- O mal está em ti. Está sempre em ti.
Vira-me as costas e fura a multidão.

Inspirando golfadas de ar fresco enquanto ouvia a música do concerto chegar até mim, não me apercebi logo de que as palavras que ele proferira se cravavam no meu corpo, perfurando-o tão nefastamente que se colaram à minha alma, cobrindo-a. Deixei-as entrar sem dar luta, porque fora ele que as dissera.

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Instinto de sobrevivência

O mais triste não é quando alguém nos morre, deixando este mundo definitivamente e a nós cheios de lembranças que recordamos com carinho, com uma vontade imutável e inalcançável de as repetir.
Não, o mais triste é quando matamos pessoas que continuam vivas, a caminhar pelo mesmo mundo que nós, a ouvir as mesmas músicas, a ver as mesmas pessoas. Ainda que estejam mortas dentro de nós, tendo deixado apenas memórias amargas distorcidas pela mentira.
Sabemo-las vivas mas não nos preocupamos com elas. O amor deu lugar ao feio e destrutivo sentimento que é o ódio, a um desejo ardente de que o carma seja, de facto real… até que mesmo ele se evaporou, deixando no seu lugar, naquele pedestal cor-de-rosa com coraçõezinhos bordados a ouro, um vazio de indiferença. Mas por fim, até esse vazio se fechou e a indiferença alastrou-se do coração ao cérebro, à barriga (e às borboletas que por lá habitaram em tempos), às mãos que costumavam ser ávidas do toque especial, à boca que tantas frases bonitas pronunciou, tantos pedidos formulou e tantas declarações de amor teve de calar.
O luto é feito num silêncio desolado, sem corpo para enterrar nem cinzas para espalhar ao som de uma bela cantiga ou de frases de apreço e de homenagem. E sem lágrimas, porque a morte foi consciente, foi querida, foi necessária, depois de tantas lágrimas terem sido já derramadas em vão e em desespero.
O fantasma da pessoa que matámos irá, eventualmente, assombrar-nos. Num parque de estacionamento, no carro ao lado parado no trânsito, numa sala de cinema, num supermercado cheio de gente ou mesmo nas fotografias que foram tiradas, nas músicas antigas e nas que ainda irão ser lançadas, nas datas significativas. Nesse momento, ao contrário do que acontece com as pessoas que nos morreram, com quem gostaríamos de passar nem que fosse um só minuto mais, resta virar as costas e correr na direção contrária, para longe da assombração e dos calafrios de medo.
Porque se fazemos alguém morrer em nós, por insuportável que possa parecer essa tarefa… é porque precisamos de sobreviver.
E a tristeza é, então, a porta para a felicidade.