domingo, 14 de fevereiro de 2016

Dicotomia

- Boa noite - despediu-se ele, deixando Clara do outro lado sozinha, mergulhada no silêncio das memórias de tudo aquilo que quase existira, calando um desejo de um convite para uma tarde passada juntos.
Tinha tanto para lhe contar, tantos conselhos para lhe pedir, tantas lágrimas para chorar no ombro dele, tantas saudades para matar, mas tivera de deixá-lo dormir, porque a vida dele continuava, tranquila e serena como era suposto, enquanto a sua ficava, volta e meia, pendurada na ideia dele.
Pousado no braço do sofá estava o livro que ele lhe dera e que começara a ler três ou quatro vezes, já, sem dar continuidade à leitura. Na televisão, o filme que estava a ver quando o ataque de saudades dele a acossou permanecia em pausa, à espera de ser posto novamente a rolar.
Mas apenas a breve conversa que tivera com ele se repetia na sua cabeça. De vez em quando dava-lhe silenciosamente seguimento, contando-lhe o que calara, perguntando-lhe o que não pudera perguntar. Não obtinha respostas nem recebia o esperado calor da presença dele, mesmo que apenas do outro lado de uma linha de comunicação.
Fechou os olhos lacrimejantes, recostou-se para trás e imaginou-o a dormir. Recordou-o, na verdade. Com detalhe.
A vida dele seguia o rumo que ele quisera traçar para ela, com o dinamismo que lhe conhecera, talvez até um pouco mais feliz, já que eliminara dela o elemento desestabilizante: aquela relação que nascera de repente, numa fase em que ele olhava para Clara com admiração, desejo e (seria mesmo?) amor, que crescera lentamente num remoinho de emoções e que culminara numa discussão seguida de outra, de outra e de mais outra.
A fase inicial de uma relação ignora as adversidades: guarda-as numa dimensão aparte, catalogando-as momentaneamente como irrelevantes, para que nada seja superior àquele sentimento em crescimento e de forma a que duas pessoas, mesmo que pertencendo a mundos opostos, se apaixonem.
Mas eis que o vermelho e o rosa da paixão são atenuados e abrem espaço para que a realidade tome lugar em todo o seu esplendor. Surgem, então, o amor e os atritos, lado a lado, numa disputa constante por atenção. Nalguns casos, vence o primeiro.
Não fora o seu...

Invejava-o. Adormecido, no aconchego da sua casa, finalmente devolvido à vida que escolhera, livre dos atritos. Livre de Clara.
Mal tapada por uma manta branca, sentindo o frio desconfortável da noite de inverno, soltou um riso sarcástico perante aquela situação: passara o dia inteiro a improvisar formas de acalmar a necessidade de procurar o homem responsável por aquela tristeza para que lhe desse a consolação de que precisava. Todavia, adiara até tarde demais, quando eram já horas indecentes para conversar com alguém, mas não até tarde demais para não obter qualquer resposta. E a parca resposta que obtivera desconcertara-a mais ainda, intensificara-lhe as saudades e deixara-a ali prostrada, tarde na noite, entregue ao seu próprio silêncio. E ao da única voz que a reconfortaria.
Dorida, transladou-se do sofá para a cama, onde o sono demorou a chegar, importunado pela necessidade urgente de pegar no telefone e lhe falar, recriminada por uma consciência berrante que a recomendava a entregar-se ao silêncio.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Olá, minha querida

Foi ali nas rochas, mesmo ao lado da praia que já era minha de coração, que te vi pela última vez. Não eras tu, sabes? Era só uma representação de ti, porque te faltava o sorriso, as bochechas - marcas genéticas de várias gerações-, o teu cabelo cinzento, os teus óculos coloridos, o teu piercing como aquele que nunca cheguei a fazer, apesar dos teus esforços nesse sentido, o teu colo que chegou a dar-me o título de maldita.
Mas eras tu, na realidade, porque foste para não mais voltar.
E levaste muito mais do que o que imaginas. De todos nós, eu sei, mas hoje falo por mim, que não te encontro numa igreja, numa fotografia, numa oração antes de dormir. Encontro-te em mim, sim, numa das melhores partes de mim porque foste tu que me permitiste construí-la, mas não consigo chegar mais a ti, falar-te e ouvir as tuas respostas.
Um dia, os meus pais ofereceram-me a ti, perguntando-te se querias amar-me incondicionalmente, apesar de não ser tua. Escolheste o sim e tornaste-te, assim, minha Madrinha.
E agora, quem é que me vai fazer sentir que faço parte, mesmo sendo de fora? Quem é que vai servir-me a melhor parte da comida, apesar de gostares de tanta gente? Quem vai atender-me o telefone com um olá, minha querida!? Quem é que não me vai rolar os olhos de desilusão perante a pessoa que eu sou?
Despedi-me de ti sem querer, porque fui obrigada a isso. Dizias sempre que não tinhas medo, que nem te preocupavas com isso, porque quando fosse era porque tinha chegado a tua hora, porque tinha de ser. Eras a pessoa mais tranquila e com mais paz de espírito que conheço…

Ao teu lado eu estava em casa. Agora vivo na rua.