quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Destino

Tanta coisa que nos ficou por fazer, tantos momentos que deixámos por viver, tantos sítios aonde não chegámos a ir juntos, tantos planos que não serão cumpridos.
Lembro-me de uma manhã, deitada nos teus braços, quando estudaste o espaço necessário em tua casa para as minhas coisas, e tive a certeza errada de que um dia era lá que iria viver, contigo, com o que é meu, o que é teu e o que seria nosso.
Imaginei os nossos filhos, a cor dos olhos deles, o formato do cabelo, o sentido de humor e a altura. Não seriam muito altos, sabes? Mas seriam bonitos. Seriam perfeitos e far-nos-iam felizes, numa casa grande cheia de crianças, que cresceriam e trariam os amigos para jantar ou passar a tarde e para quem eu cozinharia e tu passarias a ferro.
Adaptei-me ao teu espaço, às tuas pessoas, aos teus hábitos e tu adaptaste-te a mim. Aprendemos e quisemos continuar a treinar esta dança que é vivermos juntos, fazermos planos, idealizarmos seja o que for.
Houve um momento em que tivemos o mundo aos nossos pés. Demos as mãos e pisámo-lo, porque podíamos dominá-lo: estávamos juntos, conseguíamos ser invencíveis. E tudo se conjugava para que fôssemos bem-sucedidos naquilo que nos cumpríamos a fazer.
Encaixamos um no outro como se eu te pertencesse a ti e tu a mim. Como se tivéssemos sido postos neste mundo para nos conhecermos, para nos complementarmos e para nos fazermos felizes.
Mas o mundo arrependeu-se, separou-nos, afastou-nos e atirou-nos para destinos separados.
Agora resta-me aprender a viver sem uma parte de mim e com a certeza que muitos não têm de que já encontrei a minha alma-gémea.

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Bom dia

Há um mundo lá fora, há. Um gorgolejar suspirado de uma cidade borbulhante, mergulhada no seu próprio torpor da meia noite. Ou da uma da manhã...
Cá dentro apenas se ouve o respirar eletrónico de um computador a implorar pelo merecido descanso, após um dia de trabalho mais longo do que o habitual.
Vai dormir, pede-lhe. Deixa-me em paz.
Só mais uma música, só mais um texto, só mais um parágrafo, só mais uma conversa.
Com as pernas enfiadas debaixo dos lençóis, os braços desnudos e as costas apoiadas numa pilha de almofadas mal montada, prolonga a atividade, a inebriação de uma vida que começa, ainda que a meio. Ou talvez fosse mesmo no princípio e até agora tenha vivido o prólogo.
Solta o cabelo, prende-o novamente. Abre uma nova janela, escreve o endereço de um site, lê-o, fecha-o, pisca os olhos.
Come uma sobremesa, bebe um pouco de leite frio e pensa que tem ainda de lavar os dentes. E de dormir, para amanhã acordar cedo e cumprir os objetivos laborais traçados.
Foi um banal dia bom... um dia bom banal... Foi um dia banal e bom, que pretende prolongar enquanto os olhos sobreviverem à luta com a dormência provocada pelo acumular de demasiadas horas de vigília.
Combate um pouco mais, até que desiste de esfregá-los e de, a custo, os reabrir.
É deixá-lo ir, dar-lhe espaço, e voltar a acordar para mais um dia banal. Para mais um dia bom.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Beco sem saída


O inverno no Porto pode ser rigoroso e impiedoso. Às sete horas da tarde, debaixo da chuva fria que cortava o fim de dia escuro, parada no passeio, protegida apenas pela gabardina que trazia vestida, uma jovem e atraente mulher chorava desesperadamente. O rímel negro escorria-lhe pelo rosto e o cabelo, liso e comprido, colava-se à testa, à boca, ao pescoço.
Acabava de sair do meu trabalho e descia a rua, descontraído, embrenhado nos meus devaneios. Lentamente aproximava-me da mulher e ia-me apercebendo do estado de espírito dela. A pena tomou conta de mim. A cara da senhora mal se via, só o sendo possível por breves instantes, e mesmo assim, mal, só quando ela limpava as lágrimas que se confundiam com as gotas de chuva que batiam como lanças inimigas afiadas.
Com a curiosidade estampada no rosto, aproximei-me da infeliz chorosa e toquei-lhe no ombro. Ela não se virou; foi como se não me tivesse sentido.
O dia oferecia tristeza a todos o que nele caminhavam, mas as lágrimas eram o limite máximo de expressão dessa mágoa.
À frente dela estava um aglomerado de mirones que rodeava um corpo de homem estendido nos paralelepípedos da estrada.
Por instantes, ela destapou o rosto para responder a uma das pessoas que ligava para o 112, e pude ver a cara borratada dela, reconhecendo-a:
— Lara!— chamei com a minha voz grossa que ecoou na rua de um modo inédito, mas ela nem olhou para mim.
Tentei pegar-lhe nas mãos, mas era como se fôssemos dois pólos positivos que se repeliam mutuamente. Afaguei-lhe os cabelos com o olhar, aqueles cabelos por que me apaixonara. Uma paixão que nunca fora retribuída, mas que se conservara em amizade.
Atravessei aquela multidão e, ao ver o rapaz que jazia no chão e cujo batimento da vida se lhe escapara, entendi a fatalidade da situação.
Estaquei com a respiração entrecortada.
Seria um espelho?
Era real o que via?
— Lara!— voltei a chamar, desesperado.
O movimento atrás de mim intensificou-se. O corpo era erguido numa maca para dentro da ambulância do INEM
— Lara!
Sem olhar para mim, deu o braço ao médico, entrou no veículo, em direção ao hospital, e eu não deixei de vê-la, a chorar uma paixão nunca assumida, tornada impossível por obra da morte.

Chorava por ela e por mim...

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A dor de sorrir

Pegar no momento e guardá-lo não necessariamente para sempre, mas, pelo menos, até cansar. Até não ser mais do que uma ténue sensação daquilo que foi, do que aconteceu, do que extrapolou através dos poros de uma pele coberta por roupas de inverno.
Não o moldar, não o pintar, não o proteger com vidro ou plástico. Guardá-lo, simplesmente. Pousá-lo em cima da lareira, no parapeito da janela exposta à rua, na mesinha de cabeceira vagamente iluminada, e contemplá-lo todos os dias até que a saudade dê lugar à habituação, a um encolher de ombros indiferente de dias mais felizes, de outros momentos igualmente marcantes que substituam aquele já gasto, em tempos tão inebriante.
Olhá-lo, memorizá-lo, reconhecer-lhe cada pequeno traço, cada som. Saber de cor a música que tocava, reproduzir sem apoio todas as tonalidades exteriores e interiores, sentir-lhe a amargura e a doçura. Agarrá-lo até doer e deixá-lo, por fim, escapar. Vê-lo, ao longe, a perder-se nas cinzas do passado e ser capaz de não correr atrás dele, de não o chorar, de não lhe sentir a perda dolorosa.
Deixar os dias passar, saborear-lhes o vagar, atrasar-lhes a pressa, porque o que veio e o que chegou em breve será mais um chão pisado na estrada imensa de uma vida.
Conseguir, por entre lágrimas, sorrir. Rir, se possível. Cantar baixo, alto, gritar o que sair. Estender uma mão para trás, outra para a frente, mas deixar os pés presos no agora que sustenta cada segundo batido para lá do vidro do relógio de pêndulo e os olhos saltitantes para nada perderem das horas irrequietas.
Preservar o sorriso de criança inocente - feliz com a simplicidade -, maturado pela aprendizagem da dureza e das conquistas. Um sorriso de dentes tratados, preservado no mundo, crescido ao seu próprio ritmo. Mantê-lo com o orgulho nunca ferido, porque o único sorriso no meio de lágrimas não está numa posição de submissão nem de vergonha, mas assume o papel do poderoso, capaz de vislumbrar para lá da névoa e de se manter irredutível quando o mais fácil é esconder-se, adotar a outra face e juntar-se à multidão. Um sorriso de contágio que mal só faz a quem o desdiz, a quem o vê sem conseguir reconstituí-lo.

E distribuí-lo gratuitamente.