terça-feira, 8 de novembro de 2011

R.

Tendemos a esquecer-nos de quem nos fez bem. Por alguma razão traiçoeira, a vida traz com ela o tempo e, juntos, varrem-nos memórias de que nunca deveríamos ser privados. Talvez mais tarde, muitos anos de vazio depois, haja qualquer coisa à nossa frente que nos desvenda as lembranças, que nos faz pensar que um dia, algures, estive com uma das melhores pessoas que já conheci. Não sei dela, não sei quem é, agora, o que faz nem sequer onde estará, mas um dia fez parte de mim.
Eu guardo comigo, ao meu lado e dentro de mim, a melhor pessoa que conheci, aquela que mais preencheu a minha vida quando eu era criança. O luto da memória aliou-se à escassez de fotografias, impedindo-me de recordar o seu rosto, os seus traços, o seu cabelo. Não me lembro de tudo, mas lembro-me de tudo.
Tenho comigo a magia que incutiu à minha História desde cedo, com aquelas músicas de crianças que me ensinou. Deitadas na sua cama, no canto do seu quarto pequeno, eu brincava com uma carteira vermelha de rede, enquanto ela me ensinava tudo o que sabia. Sei, ainda agora, que soube mais do que deveria ter sabido. Deveria ter tido muito mais tempo para aprender tudo o que queria, para ser a boa pessoa que era, para ser filha, irmã, sobrinha, prima e, eventualmente, mãe. Tenho a certeza de que daria uma ótima mãe, com paciência de sobra e imaginação imparável.
O seu coração estragou-se, mas nunca deixou de ser bom. Cansou-a, levou-a para longe e, logo a seguir, quando a boa notícia cá chegou, levou-a para ainda mais longe.
Desde então procuro fotografias dela, gravei o nome dela no meu coração e escrevi-lhe todos os dias durante anos as histórias que lhe contaria se ainda a tivesse comigo.
Deixei de lhe escrever quando percebi a inutilidade desse gesto: ela não queria saber dos meus desamores infantis, nem das conversas sem sentido que tinha com os meus amigos. Ela queria ser deixada em paz, com o seu coração nas mãos que, embora estragado, ainda bate por cada um de nós que lhe entrou pela vida adentro.
Sinto os olhos dela em mim, sinto o calor dos seus braços e o aconchego das suas canções ecoa-me nos ouvidos constantemente.
Ela tinha o nome mais bonito, a cara mais bonita, o cabelo mais bonito e a alma mais pura que tive a sorte de poder conhecer. Comia laranjas como eu como iogurtes ou, provavelmente, mais ainda.
Agora não preciso de falar com ela para saber que me ouve, que sabe o que sinto e tudo o que lhe quero dizer, mas só isso não chega. Faltam-me as fotografias para confirmar se é verdade o que dizem e que somos parecidas; faltam-me os cheiros, faltam-me as músicas e as histórias.
Ela faz-me falta, muito mais do que alguma vez teria podido imaginar.

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