Fotografia: @SaraTrigo |
Com a ponta dos dedos esfarelava, distraidamente, um scone de um castanho
dourado perfeito, alheada da conversa que se desenrolava à sua frente. Passeou
os olhos pouco observadores pelas paredes de madeira escura, quase rural,
incapaz de apreciar a beleza do contraste pintado pelo conforto da sala
aquecida pela lareira mesmo em frente ao mar inquieto, separados apenas por um
reduzido lençol de areia e um vidro ligeiramente embaciado.
- Vais continuar a destruir o pobre scone ou vais comê-lo?
Mexeu-se no maple branco, apenas
para dar sinal de que ouvira a pergunta, não querendo empenhar forças em dar
uma resposta.
Fixou-se, finalmente, na colega que a olhava expectante, entre o
divertido e o apreensivo.
- Que sentido é que isto faz? – perguntou lentamente. – Este cenário onde
estamos neste preciso momento é utópico. Esta harmonia perfeita de materiais,
de elementos, que se tocam apenas de raspão não existe. É uma ilusão da qual
não fazemos parte, como o mar que, na verdade, só toca na parede ao meu lado
porque os meus olhos captam a realidade sob essa perspetiva, de cuja beleza
podemos desfrutar durante fugazes instantes.
- Tu fazes parte desta beleza, Catarina. Cada lugar, cada cenário
conta uma história diferente de acordo com quem a protagoniza. Tu fazes parte
desta. Tu, eu e a Carolina.
Começou a rir às gargalhadas:
- Até isso! Até nós as três somos demasiado perfeitas para a
realidade. Olha para nós: Marina, Carolina e Catarina. Três. Nomes com a mesma
terminação. Altas, magras, bonitas, bem-sucedidas. Se alguém nos fotografasse
agora, éramos uma capa de uma revista qualquer de lifestyle. – Catarina elevara a voz gradualmente. Atirou com um
pedaço de scone para o prato, espalhando migalhas na toalha. – E de que é que
isso nos serve? – A pergunta saiu num guincho, acompanhada por um encolher de
ombros.
As três mulheres não se conheciam bem, apesar de serem colegas de
trabalho há já vários anos. Aquela era, aliás, a primeira vez em que se
encontravam fora dele.
- Fui perfeita a vida toda – continuou Catarina, mirando as unhas
cuidadosamente pintadas de castanho-escuro. – Tirei o curso que devia, porque
era o que eu queria, mas também porque era o que os meus pais achavam indicado
para mim. Segui os passos do meu pai e nunca tive de procurar trabalho, por ser
tão boa no que fazia. Sempre! Nunca fiz uma única coisa errada, nunca tomei uma
decisão que não devesse. Até o destino escolhe para mim o caminho correto –
voltou a rir, desta vez sem qualquer vontade. – Imaginem que o meu marido me
deixou, mas para não ser mãe solteira, sofri um aborto! O mundo decidiu que eu
tenho de ser perfeita e o que eu sou é uma personagem de um cenário idílico,
sem qualquer controlo daquilo que faço. Sou perfeita e isso não me leva a lado
nenhum. Tal como vocês…
Instalou-se um silêncio pesado enquanto Catarina escondia a cara por detrás
das mãos, ocultando as lágrimas que secou antes de voltar a encarar as colegas.
- Desculpem…
- Não, tens razão – atalhou Carolina. – Eu sou a mãe, esposa, irmã e
filha perfeita. Vivo rodeada de gente mas sinto-me sozinha o tempo todo, porque
o peso de todas as responsabilidades e da felicidade de toda a gente está em
mim. Quem é que se encarrega da minha? Eu, só eu. Mas não tenho tempo para ela,
porque estou demasiado ocupada com os outros. – Arregalou os olhos, sublinhando
o que ia dizer. – Amo-os! Amo a minha família, a minha casa, o meu cão e o meu
trabalho, mas não tenho nada que seja meu. Tive de desistir de correr quando
engravidei, deixei de ter tempo para qualquer outro passatempo… esta é a
primeira vez em vários anos que saio de casa sem ser com a família.
Catarina e Carolina entreolharam-se numa solidariedade silenciosa
antes de se voltarem para Marina, como que lhe pedindo que falasse.
- Oh, agora é a minha vez? – brincou, desconfortável, a mais nova das
três. – Eu não sou perfeita, não sou como vocês Ou melhor, a minha perfeição é
só aparente. A minha magreza é resultado de um distúrbio alimentar que me
acompanha desde a adolescência, quando andava no ballet, apesar de ter sido por causa disso que tive de desistir. Passo
a vida sozinha porque sou escrava dele. Mesmo que consiga expor-me ao mundo e
às pessoas tempo suficiente para começar uma relação, nenhuma sobrevive a isto.
E apesar de ter todos os conhecimentos das consequências que posso vir a sofrer…
e de que posso sofrer já sem sequer ter noção…, de saber a sua origem e a teoria de
como acabar com isto... não consigo, porque no fundo não posso ser menos do que
perfeita.
O peso das confissões caiu sobre o cenário de perfeição, tornando-o
mais lúgubre, lançando sobre ele um véu negro, filtrando, assim, as tonalidades reconfortantes do outono.
- Quem é que nos impôs isto? – Carolina fez um gesto vago com a mão,
encolhendo novamente os ombros. – Acho que fomos nós próprias…
Respondeu à sua própria pergunta, vocalizando, no entanto, aquilo que
as outras pensavam.
Saíram para a humidade fria da tarde. Faziam juntas o luto do segredo –
o individual, mas também o comum – cujo silêncio haviam quebrado. À medida que
avançavam sem pressa ao longo do passadiço de madeira por entre as dunas e a
vegetação acastanhada, através da qual o ano envelhecia e as estações quentes
se desvaneciam, o véu de negritude ia caindo, como uma tira de seda deixada no
canto de um sofá de pele.
Tinham alcançado e mantido ao longo dos anos aquilo que a maioria das
pessoas almejava. Eram, cada uma, um exemplo da mulher ideal: belas profissionais
de sucesso, independentes económica e emocionalmente, pilar de apoio de quem
necessitasse – incluindo elas mesmas – e, claro, desempenhavam o papel
irrepreensivelmente em cima de um elegante par de saltos altos a compor a toilette imaculada.
Chegaram ao final do passadiço, descalçaram-se e sentaram-se nas
rochas com os pés enterrados na areia fria, a admirar a rebentação onde os
pássaros pousavam e levantavam em voos incessantes e descoordenados. O vento
fustigava-lhes os cabelos que se emaranhavam entre si, resultando num desalinho
a que não estavam habituadas, ao mesmo tempo que sentiam a humidade salgada impregnar-se
no algodão das calças e atacar a maquilhagem, esbatendo-a.
Os pensamentos vinham e iam ao sabor da movimentação do mar, confundindo-se.
Confundindo-as com a sensação inédita de liberdade que, ali pousadas, num
momento improvável, tentavam interiorizar.
Assistiram ao espetáculo do pôr-do-sol enevoado, sacudiram a areia dos
pés, calçaram os sapatos, compuseram a maquilhagem com a ponta dos dedos,
pentearam os cabelos e caminharam de regresso a casa.
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