[Post originalmente publicado em CPR - A Reanimação da Escrita]
Lembro-me – ao detalhe – do dia em que tudo mudou.
Amanheceu como qualquer outro que o
antecedera, naturalmente, não havendo qualquer aura pressagista no ar
que me levasse a suspeitar de que algo trágico estivesse prestes a
acontecer. Cheirava bem, até, a alfazema e chão queimado pelo sol
persistente do longo verão no terraço, mesclado com o ténue aroma das
papas de aveia doces com canela e baunilha que a mãe cozinhava no fogão
todos os domingos.
Sentei-me ao lado do pai na
espreguiçadeira e lemos juntos o jornal. Como habitualmente, ele
comentou com argumentos fundamentados as notícias de política e de
economia, resmungou meia dúzia de coisas impercetíveis sobre as de
desporto, passou rapidamente os olhos pelos relatos de acidentes e de
crimes com um esgar de nojo e, no momento em que o fechou, a mãe
pousou-nos à frente o pequeno-almoço.
Fiquei a observá-los, maravilhada com o
conto de fadas que se desenrolava diariamente à minha frente, esperando
(e sabendo, na verdade, porque cresci com o exemplo dos pais) que
chegasse a minha vez de viver o meu: o pai segurou na mão da mãe,
puxou-a para o seu colo, beijou-lhe o ombro, rodeou-lhe a cintura com o
braço esquerdo, para poder comer e dar-lhe de comer com a mão direita,
interrompendo as colheradas para exclamar:
– Isto está delicioso! Maravilhoso mesmo.
Era o último dia do meu verão. Era o
último dia da minha infância. Costumava dizer isto antes mesmo de
conhecer o esplendor total do significado desta expressão. Com as malas
feitas, pronta para a mudança para Lisboa, passei o dia com os meus
amigos de sempre na praia fluvial, a fazer planos de reencontros e a
projetar as nossas experiências de caloiros, como se soubéssemos algo
sobre isso.
Foi ao sair da água, com o sol a
ofuscar-me ligeiramente os olhos, que vi o Bruno. Estava parado de pé a
uns dez metros de mim, com o capacete e a toalha ainda na mão. Os óculos
de sol na cabeça permitiram-me ver, sem margem para dúvidas, que me
fixava com atenção. Instintivamente encolhi a barriga que não tinha,
endireitei os ombros apesar de saber que empinaria, assim, o meu peito, e
abrandei o passo para poder apreciá-lo com calma. O cabelo castanho
queimado, a pele bronzeada, os braços musculados, o nariz ligeiramente
torto.
Tinha uma paixão platónica por ele desde
que o conhecera, cinco anos antes, no aniversário da minha amiga Cátia,
prima dele, por isso o meu coração batia descompassadamente e o meu
corpo tremia ligeiramente.
Quando o cumprimentei, senti a mão dele pousada no fundo das minhas costas, puxando-me para ele e ali se mantendo demoradamente.
– Não vais nada para casa – ralhou-me
o Pedro no momento em que saíamos da praia e eles planeavam ir jantar a
Braga. – Vens jantar connosco e depois vamos todos sair.
– Anda lá, é a nossa despedida…
– Para além disso, não vais fazer a desfeita ao meu primo.
Corei imediatamente:
– Que é que o teu primo…?
– Oh, toda a gente viu, toda a gente vê. Até tu, não te faças de ingénua.
É com alguma vergonha que admito que foi
demasiado fácil convencerem-me a juntar-me a eles, pelo que quando dei
por mim estava sentada num tasco barulhento com um copo cheio de sangria
na mão. Não valia a pena fazer-me de rogada. Queria, de facto,
aproveitar aquela noite para me divertir porque tinha a sensação de que
com a ida para a faculdade e com a nossa primeira separação nada mais
seria igual. Eram entre quinze e dezassete anos de convivência
praticamente diária que levávamos na bagagem, era uma amizade quase
inigualável que nos unia a todos – uns doze ou treze – praticamente
desde o berço. Parecia inabalável, mas tinha de antecipar para a
mudança.
Brindei e bebi mais do que a dose que
achei que conseguia aguentar. Foi essa a estratégia que encontrei para
lidar com o facto de o Bruno se ter sentado ao meu lado: ocupava as
mãos, ocupava a boca e mostrava-lhe que sou uma pessoa descontraída que
sabe divertir-se. E ganhei coragem para ter a mais longa e mais profunda
conversa com ele até então.
Consequentemente, quando saímos para a
discoteca e ele me abraçou, em vez de sentir um descarrilamento dentro
do peito, tinha apenas algumas borboletas a fazer-me cócegas no
estômago, assinalando o início do meu conto de fadas.
Alguém parou para comprar tabaco e nós
ficámos os dois lá fora abraçados, a respirar o perfume um do outro, a
parca barba dele a arranhar a pele do meu rosto. O calor do corpo dele
reconfortava-me de uma forma que nunca antes conhecera, como se toda a
vida ali tivesse pertencido.
Subitamente, algo do lado de dentro da
montra chamou a minha atenção. Soltei-me dos braços do Bruno e
aproximei-me do vidro para ver melhor, sabendo à partida que era apenas a
minha cabeça a pregar-me partidas.
Mas não. Reconheci o meu pai e o seu
colega de trabalho que já lá fora a casa algumas vezes. No entanto,
havia ali um atrito na comunicação entre os olhos, o cérebro e a boca,
que se mantinha numa silenciosa exclamação de terror, enquanto o cérebro
negava aquilo que os olhos viam com certeza. Fechei-os com força e
abri-os várias vezes seguidas, até recuperar a calma, pelo menos o
máximo que conseguia dadas as circunstâncias.
De costas para mim, o colega do pai (como
é que se chamava? Ricardo? Roberto?) estava encostado a ele, que, por
sua vez, mantinha um braço à volta dos seus ombros e lhos acariciava com
a ponta dos dedos. Segui o movimento durante longos segundos, até que o
pai se inclinou, sussurrou-lhe algo ao ouvido, sorriram um para o outro
e beijaram-se.
Soltei um Ah! seco. Ignorando o Bruno, que me perguntava incessantemente o que se passava.
O que era aquilo?
Eu sabia o que era aquilo: era o pai a trair a mãe. Com um homem.
Era o meu mundo a desmoronar e a arrastar
com ele todas as crenças em que se baseara o meu crescimento, a minha
preparação para a vida adulta. A que iria agarrar-me agora? Que exemplo
teria para me guiar? Que era suposto fazer a seguir?
Sem chão nem teto, a paisagem de tudo o que conhecia tinha acabado de desaparecer. Senti-me perdida e aterrorizada.
O relógio marcava meia-noite e um.
– Que se passa? – insistiu o Bruno, puxando-me para um canto ao ver as minhas lágrimas.
– Oh, Bruno! – choraminguei. – O meu pai está ali dentro com outra pessoa. Estão a… A minha mãe não sabe…
Ele olhou em volta como que a verificar, embora não conhecesse nenhum dos meus pais, segurou-me no rosto e disse:
– Calma, foi um choque, mas já passa.
Acontece a todos nós. Algumas vezes vemos, outras só sabemos, outras nem
isso, mas isto acontece e não é o fim do mundo.
Não podia acreditar que ele falava daquilo tão levianamente: um casamento traído e estropiado é
o fim do mundo! Pelo menos o do meu. Que sentido faz duas pessoas
casarem se na verdade não se amam, se não é para lutarem uma pela outra
no momento em que as coisas se tornam difíceis?
O Bruno abraçou-me e eu deixei-me limpar
os olhos na sua t-shirt. Ouvi-o dizer aos outros para irem indo que já
lá íamos ter e senti-me grata por não estar ali sozinha e pelo cuidado
dele em permitir-me não ter de fingir boa disposição.
– Vem. Vou levar-te para casa – ofereceu, entregando-me o seu capacete.
Agradeci-lhe sinceramente, mas fiquei confusa quando parámos, embora não à porta da minha casa.
– Eu não moro aqui – expliquei.
– Eu sei. Moro eu – sorriu-me. – Mas em
casa deves ter a tua mãe e, acredita em mim, não queres dar de caras com
ela agora. Aqui não está ninguém, podemos estar à vontade.
Hesitei, mas ele parecia seguro daquilo
que dizia, pelo que escolhi confiar nele e segui-lo para dentro de casa,
onde me ofereceu uma cerveja.
Sentados no sofá, contou-me:
– Também já encontrei o meu pai com outra
pessoa. Era mais novo, tinha uns quinze anos e lancei-lhe um ultimato:
ou ele contava tudo, ou contava eu. Ele tentou convencer-me a guardar
segredo, porque não ia fazer bem nenhum a ninguém contar aquilo, até
porque já tinha acabado. Mas eu não conseguia continuar a esconder, por
isso fui em frente, disse à minha mãe num jantar de família. – Riu sem
gosto. – Foi o caos, ela ficou muito envergonhada, ralhou comigo, ralhou
com o meu pai, saiu de casa durante três semanas. Foi uma confusão.
Bem, acabou por se resolver tudo, de facto o meu pai acabou aquele caso e
os meus pais continuam juntos.
Percebi a sua intenção com aquela
história, mas não era a minha. Os meus pais não eram assim… e o meu pai
não estava com outra mulher, mas não podia dizer-lhe isso.
– Obrigada – disse, não sabendo o que mais dizer.
Em resposta, ele inclinou-se e beijou-me. E que beijo maravilhoso, suave, saboroso.
Tirou-me a blusa e eu, relutante, deixei.
Tirou a t-shirt e eu fiquei novamente fascinada com aquele tronco
moreno e musculado tão perto de mim que podia tocar-lhe. E foi isso
mesmo que fiz.
Desapertou-me os botões das calças e eu empurrei-o:
– Não faças isso – pedi.
– Não te preocupes – sorriu. – Não fazemos nada que tu não queiras.
Reconfortada e segura por aquelas palavras, deixei-o tirar-me as calças, o soutien e as cuecas.
Deitada no chão ao lado dele, com a
cabeça apoiada no seu peito que ainda subia e descia de acordo com a sua
respiração ofegante, pensava no que tinha acabado de viver ali naquela
sala escura. Não era a noite do meu casamento, não namorava, sequer, com
o homem a quem acabara de me entregar de corpo e alma e, ainda assim,
não tinha feito menções de lhe resistir.
O dia 12 de setembro finalmente chegara, e
numa questão de um par de horas estava a desenrolar-se totalmente fora
do plano. O vazio que se instalara dentro do meu estômago crescia
descontrolado e eu só queria ir para casa, mas já não tinha uma: a da
Póvoa de Lanhoso estava desfeita, a de Lisboa ainda não era minha. Os
meus pais não viviam o conto de fadas em que eu acreditava. E eu já não
era a pessoa que achava ser; já não me conhecia: se até à véspera sabia
como iria – ou, pelo menos, como deveria – reagir às diversas situações,
agora duvidava de mim, dos meus conceitos e das minhas decisões.
Levantei-me e vesti-me. O Bruno fez o mesmo e, à porta da minha casa, deu-me um último beijo e disse:
– Boa sorte para amanhã. Espero que seja o início de uma bela carreira. Ligo-te ao final do dia.
– Obrigada. Até amanhã.
Não foi com surpresa que me dei conta de
que, ao contrário da minha antiga versão, tinha a certeza de que não
ouviria mais falar nele. Nem no final do dia, nem nunca mais.
Em vez de entrar em casa aos pulinhos de
alegria e felicidade, como sempre imaginara que aconteceria quando
aquele momento chegasse, subi as escadas em silêncio e enfiei-me na
cama, incapaz de adormecer.
A minha vida estava toda empacotada aos
meus pés. Ainda que tivesse sido eu a guardá-la, não fazia ideia do que
iria encontrar quando desfizesse as malas.
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