Vestida, quase
pronta para sair de casa, os pés apenas protegidos pelo fino tecido dos
collants pretos estavam em contacto quase direto com o frio do soalho. A medo,
como se fizesse algo proibido, abriu silenciosamente a porta que dava para uma pequena
arrecadação revestida de prateleiras. Sabia exatamente onde estava aquilo que
queria: empoleirou-se na maçaneta de uma das gavetas de baixo e esticou-se, de
forma a alcançar a caixa branca de letras pretas. Há quanto tempo a teria
enfiado ali, protegida de todos os olhares, protegida do passar do tempo?
Retirou-a
cuidadosamente, receosa de a abrir à toa. De pernas cruzadas no chão, levantou,
numa demorada cerimónia de regresso ao passado, a tampa, revelando um par de
sapatos vermelhos. Pegou num deles, sentindo o cheiro do verniz e de sapatos
novos, usados apenas uma vez.
Calçara-os
de manhãzinha, ainda com as calças de ganga e a t-shirt branca vestidas e, não obstante, dançara com eles a noite
toda, ignorando as dores que os 12 centímetros de salto lhe provocavam, subindo
dos pés para os joelhos. Haviam sido a última coisa que retirara, já com o
vestido pendurado num cabide forrado de cetim, o cabelo liberto dos ganchos e a
maquilhagem limpa do rosto. Ficara assim, nua, só com a aliança no dedo e os
sapatos vermelhos calçados, em frente à janela para a madrugada ainda escura, a
prolongar a felicidade daquele dia único, como que a memorizá-lo para sempre.
Tinham-se
passado quatro anos desde esse dia. A aliança que, entretanto, saíra do dedo,
estava agora dentro de uma caixa de madeira à espera de um novo destino,
incapaz de se deixar cair no esquecimento. Os sapatos saíam, finalmente, de
dentro da caixa de cartão branco, no fundo da qual jazia uma fotografia sua de
costas, sem roupa, com os sapatos calçados e a mão esquerda caída ao longo do
corpo, iluminada pelo brilho da aliança dourada.
Fora ele
que registara aquele momento sem que ela disso se apercebesse. Abraçara-a,
então, por trás, sentara-a na beira da cama e descalçara-lhe os sapatos que
guardara dentro daquela mesma caixa.
E ali
tinham ficado, à espera do momento adequado, de um outro dia que fosse
igualmente digno deles.
Lembrava-se,
ainda, do perfume dele, do toque do cabelo dele, do timbre da voz dele. Ou,
talvez, não se lembrasse assim tão bem quanto acreditava e o tempo e o cérebro,
numa colaboração espontânea, se tivessem encarregado de recriar essas memórias,
polindo-as ao sabor da sua vontade.
Sem pensar
demasiado naquilo que estava prestes a fazer, calçou os sapatos e saiu de casa,
mostrando-os novamente ao mundo, desta vez não cobertos por um vestido comprido.
Pelo contrário, estavam totalmente expostos, longe do tecido da saia acima do
joelho.
Era um dia
banal, como qualquer outro que o tivesse precedido ou que se lhe seguisse. De
cada vez que esse pensamento lhe ocorria, olhava para baixo e o verniz sorria-lhe,
acompanhando-a a cada passo e contagiando-a com a alegria colorida do vermelho.
No final
do dia, alheia ao cansaço que a fora consumindo, ligou a aparelhagem e, no chão
preto da cozinha, dançou sozinha com os sapatos vermelhos e a saia cinzenta a
rodopiar, como quando era criança. E feliz.
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