A porta aberta chamava o ar frio da manhã a entrar,
sem barreiras nem controlo, apenas uma passagem direta para o calor esforçado
do interior.
Lá fora, a rua sinistra, tantas vezes percorrida e
pisada com todos os pares de sapatos que possuía, apresentava-se como um
elemento estranho, desconhecido. Hostil, até, repleto de caras anónimas num mar
de medos, de sustos e de repreensões alheias.
Gelava, fixando as pessoas que desfilavam à sua
frente, apressadas para continuar as suas vidas tão cheias e completas que se
desinteressavam do que as rodeava e daquele par de olhos que as perscrutava,
querendo saber mais do seu caminho e, ao mesmo tempo, temendo descobrir a
complexidade daqueles seres, de certa forma superiores.
Lá dentro, no quente conforto de uma casa habitada, os
rostos familiares com que não se identificava escarneciam, evidenciando-lhe o
seu desencaixe, a sua ausência de pertença. Não estava lá e não estava cá, era
parte deles, mas não tinha lugar ao seu lado, naqueles sofás de couro bem
cuidado, naquelas canecas de chá fumegante, naquelas mantas polares, naquelas
conversas fluidas de quem se conhece bem e partilha momentos quase sem ter de,
para isso, falar.
No vidro da porta descobriu o seu reflexo. Os olhos
quase fechados, o nariz fino, a ausência de sorriso nos lábios, o queixo
arredondado e os traços distintivos eram seus, sem dúvida, mas não se
reconhecia neles. Era a sua cara, mas não era a sua pessoa, porque não se revia
naquele ser apagado, despojado de qualquer brilho.
Olhando um pouco mais fundo, encontrou uma escuridão
que sabia existir, que sentia, mas cuja intensidade da negritude assustava,
porque aparentava ser um ponto sem retorno, do fundo do qual era impossível
recuperar.
Punha um pé de fora e uma onda de arrepios
enregelados sacudiam-lhe o corpo confuso. Refugiava-se lá dentro até o calor
excessivo lhe colar as roupas à pele, num incomparável desconforto.
A dança sucedia-se, sempre refletida naquela porta de
vidro que lhe seguia cada movimento, rangendo de vez em quando, espicaçada pelo
vento provocado por aquela pessoa fora de si e do mundo, querendo descobrir
qual o lugar a que pertencia. Lá dentro, lá fora ou no intermédio, com um pouco
dos dois, com nada de ambos?
Naquele limbo estonteante, a porta de vidro
sugava-lhe um pouco mais da sua alma a cada passo em frente e a cada passo
atrás, perdendo-se na indecisão e na indefinição de não se sentir bem em lado
nenhum, nem na sua própria pessoa.
Não dormia na rua, mas era um sem-abrigo.
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