Tinham-se passado cerca de quatro meses desde a tarde
que tudo mudara. Não no sentido convencional nem com um marco de mudança
definido, mas fora como se os ventos tivessem começado, apenas porque sim, a
soprar a seu favor.
Sentada no sofá, coberta por duas mantas quentes, via
esses últimos meses passarem-lhe diante dos olhos em forma de fotografias e de
pequenos vídeos relativamente acelerados, ao som de uma música romântica e bem-disposta,
até que a sucessão de imagens travou a fundo e estacou naquela noite gelada que
nem as iluminações natalícias atenuavam.
O coração esmurrava-lhe o peito com violência e o nó
da angústia estrangulava-lhe a garganta. Queria falar, desabafar, gritar, mas
perdera a voz. Nem chorar conseguia, ainda que sentisse que era essa a única
forma de aliviar aquele aperto.
Tinha sido culpa sua: permitira-se acreditar e
relaxara na certeza de que era para ser. Achara que daquela vez tinham tudo
para resultar, para serem mais fortes do que os medos, mas dera-se conta de que
os fantasmas não eram espectros do passado que surgiam de vez em quando para os
atormentar. Tratavam-se, afinal, de monstros que partilhavam, no momento
presente, a vida com ele, rasgando, por consequência, a dela em incontáveis
fiapos sangrentos.
Não sabia dele. Procurava-o por todo o lado não
chegando a contactá-lo para não o empurrar para mais longe ainda. Mentia. Não
lhe falava para não ter de ouvir a verdade dolorosa de que não lhe era
suficiente.
As duas da manhã chegaram e passaram numa sequência
acrobática de olhos no telemóvel e na televisão, fingindo distrair-se.
Tentando, desesperadamente, distrair-se.
As três da manhã apresentaram-se como uma luta
estafante contra o sono. Não podia ir dormir sem saber que ele voltara para
casa, que estava lá sozinho e que se lembrara de lhe mandar um beijo antes de
dormir.
Às quatro da manhã soube que estava a fazer figura de
parva e que era em vão que esperava, mas deixou que as cinco da manhã a encontrassem,
ainda, numa sonolência não admitida, agarrando o telefone firmemente na mão
direita, confirmando que tinha a internet e o som ligados.
Não era falha informática. Era falha humana. Dele ou
dela, não sabia. Provavelmente dos dois, numa culpa muito diferente.
Deitou-se, soluçou forçando o choro que não a aliviou
e adormeceu, por fim, com o telemóvel pousado na almofada.
Viu-os juntos; ouviu-lhe o riso de mulher
despreocupada, segura de si e dele. Quis fugir e virar costas, mas a força
magnética do nefasto proibido manteve-a de olhos pregados naquele par abraçado,
que construía, diante de si, memórias que ficariam para sempre.
Acordou sobressaltada e dorida. Dormira umas quatro
horas, não muito mais, e não descansara nada. Sentia-se sem forças nem vontade
para encarar o dia que vivia para lá da persiana fechada, mas aterrorizava-a a
ideia de adormecer e regressar àquela realidade do pesadelo.
Respirou o aroma do café até este estar demasiado
frio para o conseguir beber. Aqueceu-o, sorveu um golo pouco satisfatório e
deitou o resto no lava-loiças. No telemóvel ainda nada.
Fez duas torradas, mais para se distrair do que para
matar a fome, e foi-se forçando a trinca-las diante de um desinteressante
programa de televisão sobre qualquer coisa.
Não sabia quanto tempo mais aguentaria aquele
equilíbrio, uma vez que já pendia mais para o lado da loucura do que para o da
sanidade mental. O seu lado racional exigia-lhe que se deixasse de tretas, de
sonhos e de imaginações ensandecidas e que assumisse uma postura menos submissa
aos seus caprichos mimados, que lhe diziam que talvez devesse aguentar um
bocadinho mais. Só até o convencer… só até ele se convencer de que não
precisava de mais ninguém.
A meio da tarde, os seus olhos inchados e sonolentos
leram uma mensagem dele, exatamente nos moldes que tinha imaginado. Nada sobre
a noite anterior, nada sobre gostar dela ou ter sentido a sua falta. Só um vago
interesse em saber se dormira bem e se queria lanchar com ele.
Dormi bem, sim.
Mas talvez devesse ter dormido um pouco mais ;), respondeu na mesma
mensagem em que aceitou o convite para lanchar.
Que se lixe,
pensara. Afinal de contas, hoje é comigo
que ele quer estar.
Assim que o encontrou, abraçou-o com força,
pousou-lhe um demorado beijo nos lábios e perguntou-lhe, numa animação
ensaiada, sem saber de que tipo de resposta estava à espera:
- Divertiste-te, ontem?
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