Era cedo – os primeiros raios de sol começavam a
iluminar a rua ainda fria e húmida pela noite de outono, para lá das persianas
fechadas. Abriu os olhos para o escuro, sentindo-se quente e segura, com o
braço dele pousado distraidamente por cima da sua barriga.
Sorriu e quis poder tirar uma fotografia para usar
como prova para ele, que dizia sempre ser incapaz de abraçar alguém durante o
sono. Em vez disso, voltou-se para ele muito devagar, para não o acordar, e
devolveu-lhe o abraço. Esfregou levemente o nariz no pescoço dele, recebendo
laivos do seu perfume. Apertou-o com força, mesmo consciente de que tal gesto
poderia desfazer aquele emaranhado de corpos, a fim de marcar em si tal
momento, tão raro, em que todo ele estava em contacto com ela, sem enunciar
palavras que lhe afligissem o peito, sem que ela pudesse fazer perguntas cujas
respostas não queria ouvir.
Fechou os olhos, sem sono, querendo absorver e
perpetuar a sensação de pertencerem um ao outro. Era efémero, sabia disso. Não
podia dedicar-se demasiado a esse pensamento, pois precisava de respirar,
talvez até de voltar a dormir durante mais uma ou duas horas. No entanto,
pressentia, quase ao ponto da certeza, que o seu tempo estava a chegar ao
fim. Teriam mais duas semanas. Uma adicional, talvez, em que ela tentaria
resolver as coisas, perceber porque se teria ele afastado, embora soubesse a
resposta: passaria a ter os dias mais livres, teria menos tempo para ela.
Aquele oximoro doía-lhe na pele, na alma e na cabeça.
Fizera tudo para ser suficiente para ele, conseguira-o, finalmente, quando as
circunstâncias se haviam conjugado favoravelmente, mas aquela pausa tinha um
final à vista e, com ela, levaria a sua suficiência.
Exagerara. Permitira-se deixar controlar pela espiral
de pensamentos dois passos à frente, pelo que lhe faltava agora o ar, os olhos
humedecidos ardiam-lhe e a cabeça latejava de medos. Não sabia como iria voltar
à vida sem ele, sem o saber disponível e à sua espera.
Não ia conseguir voltar a dormir.
Apertou-o um pouco mais, inspirou fundo e murmurou
muito baixinho, não fosse ele ouvir:
- Amo-te. És a melhor parte de mim e o melhor do meu
dia. És a melhor visão do meu futuro… quem me dera ser a tua.
Libertou-se do peso dele, deslizando pela cama fora.
Desceu as escadas em direção à cozinha, por onde a
claridade daquela manhã antecipava um dia frio, de horas perdidas no chão, em
cima de um cobertor, em frente à lareira acesa.
Imaginava-se parte daquela casa, das rotinas, do sobe
e desce típico da azáfama familiar. Sabia que encaixava ali, sentia-se em casa
na casa que não era a sua, à qual conhecia os cantos e as manhas. Havia
pequenas marcas suas, mesmo muito ténues, que lhe davam, de vez em quando, a
ilusão de que um dia não voltaria a sair de lá.
Era ele o homem da sua vida, era aquela a vida que
escolhera e escolheria para si, mas que lhe era vedada uma e outra vez, como se
errasse perante as decisões do Universo e este fosse pegando nela para a
colocar novamente no caminho do desígnio que era suposto cumprir.
Uma e outra e outra vez.
Sabendo que tinha os dias contados, ao mesmo tempo
que reaprendia a viver sem ele precisava de – devia-se – aproveitar cada
instante em que respiravam o mesmo ar, já que podia ser o derradeiro.
Deitou café em duas canecas, barrou manteiga em
quatro torradas, cortou pedaços de fruta para uma taça grande e subiu as
escadas de volta ao quarto, com o tabuleiro do pequeno-almoço nos braços. Ao
transpor a porta, deu com ele sentado na cama a ler, iluminado pela luz que
entrava pela persiana aberta até meio.
- Ia zangar-me contigo por não estares aqui –
começou. – Mas depois senti o cheiro do café e, com a fome com que estou, achei
melhor deixar-te alimentar-me.
Sentou-se ao lado dele na cama, feliz.
- Adoro alimentar-te.
Deixa-me
alimentar-te para o resto da vida. Foi o pedido que calou, engolido num
soluço.
Deixou as torradas quase intactas e o café bebido
apenas até meio. Comer era uma perda de tempo, especialmente quando o estômago
se fechara e não parecia ir colaborar tão cedo.
- Que se passa contigo? – perguntou ele.
- Nada – respondeu ela, num fio de voz. – Fazes-me
feliz.
A ideia de
desapareceres é que me destrói, pensou.
Ele puxou-a para si e, no quarto que um dia pensara
vir a ser o seu, amaram-se. Ou assim lhe pareceu, sufocada pelo peso dele à sua
volta, perdida no aroma do seu corpo, com o coração totalmente entregue a ele.
Não sabia como ia proteger-se, como ia lidar com a
ausência dele, uma vez mais. Não depois do sonho, de várias utópicas semanas de
romance quase real. Parecia real. Fora real.
Era fraca demais para o ver virar-lhe costas e
virar-lhas também, não tinha nada a que se agarrar, que a mantivesse viva dia
após dia, digna de si.
Duas semanas mais tarde, nua, no chão da sua casa de
banho, teve uma decisão para tomar. A mais importante até então. Provavelmente
a mais importante daí para a frente.
Por ironia, a pessoa que a ajudaria a resolver uma
encruzilhada assim era precisamente aquela com quem não sabia se queria
partilhar aquela indefinição. Não estava pronta, mas queria-o, mais do que
qualquer outra coisa na vida.
Sentia-se fraca, com a cabeça vazia, incapaz de
raciocinar e de desempenhar a mais básica das tarefas, como tomar duche. Mal
disposta, arrastou-se para debaixo da água quente.
Aquela que previa vir a ser a decisão dele era-lhe
inconcebível. Seria dolorosa demais em todos os sentidos, destrui-la-ia um
pouco mais deixando-a sem nada, vazia dele, de si, de sonhos e de qualquer
dignidade. Estava sozinha, escolheu.
Bateu-lhe à porta de casa com a desculpa de lá ter
deixado um casaco. Longe do olhar dele, recolheu as poucas coisas que ali fora
deixando, abraçou-o com a força de quem sabe ser a última vez e foi-se embora,
deixando para trás um adeus, o seu grande amor e a vida que nunca lhe
pertencera.
Esperava-a um futuro diferente daquele que alguma vez
teria pedido. Não estaria, todavia, sozinha: se tudo corresse bem, em breve
começaria uma nova vida com o fruto daquela relação. E nunca mais teria de
despedir-se dele.
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