Nos primeiros dias de novembro, quando a chuva e a
escuridão aceitaram ceder umas tréguas, o sol que voltou a queimar a areia –
como se fosse novamente verão em terra – contrastava com a revolução do mar,
que fugia, puxado pela própria corrente, em direção ao inverno.
Havia quem lhe chamasse verão de São Martinho, mas
havia, também, quem não se perdesse em toponímias e aproveitasse, apenas, o
calor fora de horas que relembrava aos mais esquecidos o privilégio que é viver
no Porto.
Mariana passou a comprar uma sandes, estendeu uma
toalha na praia do Aterro e pousou os pés na areia enganadoramente fria. De vez
em quando, o seu silêncio era interrompido por conversas esporádicas de grupos
que passavam a correr no passadiço de madeira acima da sua cabeça. Seguia-os
com os olhos até os perder de vista e voltava a fixá-los nas ondas, que
cresciam lentamente e rebentavam com fúria a escassos metros dos seus pés.
Fingia refletir sobre a vida. Para dizer a verdade, o
pensamento tentava focar-se nas decisões que tinha para tomar, no rumo que
tinha de definir, mas acabava por ser distraído pelo pescador que montava a sua
cana ou pelas gaivotas que disputavam alimento. Vencida, fechava os olhos para
ficar a ouvir, apenas, o mar, numa tentativa de algo semelhante a meditação, antes
de voltar a concentrar-se em si, no que lhe faltava e no que precisava de
fazer.
Foi despertada desse estado de indolência por um som
estranho trazido pelo vento. Abriu os olhos incomodada, sentou-se direita e
perscrutou a praia, em busca daquele que ousara importuná-la no seu refúgio.
Reparou num homem que avançava pela orla do mar, com as calças arregaçadas pela
canela e os pés descalços enfiados na areia molhada, de vez em quando submerso
pelos restos das ondas que chegavam até si. Vinha de norte e havia uma música
forte, semelhante a ópera, que o acompanhava.
Mariana ergueu-se, zangada com a interrupção. Era,
realmente, ópera, o som que lhe chegava. E, por alguma razão, aquele
desconhecido achara razoável levar um rádio para um local público, ligá-lo e
obrigar toda a gente a ouvir.
Avançou alguns passos na direção dele mas estacou ao
aperceber-se dos gestos feitos pelo homem e que acompanhavam a música. Não
havia rádio algum, nem nenhum outro aparelho semelhante: era o homem que
cantava, encantando-a com o som da sua voz forte e potente.
Aproximou-se um pouco mais, receosa de o afastar, até
conseguir ver que pela cara abaixo lhe brilhavam dois sulcos húmidos que
percebeu terem origem nos olhos que o homem fechava com força.
Ficou ali parada, debatendo-se contra o ímpeto
urgente de descobrir quem era ele, o que fazia ali, porque chorava, para quem
cantava.
Viu-o, então, enfiar a mão direita no bolso das
calças e de lá retirar uma flor que não conseguiu distinguir. Afagou-lhe as
pétalas cuidadosamente, como se alisa o papel de embrulho de um presente que se
vai oferecer, e lançou-a ao mar. E ali ficou, a vê-la ser disputada pelas
vagas, acompanhando aquela dança com uma música que Mariana achava conhecer,
mas cuja interpretação tão pessoal cantada pelo homem a impedia de identificar.
No momento em que percebeu a letra, trauteou-a em
silêncio, com os olhos inundados pelas lágrimas:
I'll
find my way
Through
night and day
'Cause
I know I just can't stay
Here
in Heaven
Time
can bring you down
Time
can bend your knees
Time
can break your heart
Have
you begging please
Begging
please
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