quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Paradoxo da inocência

Era um sábado pouco depois da mudança da hora do final de outubro, pelo que às seis horas da tarde já era noite cerrada, cuja escuridão por si só já intensa era acentuada pela chuva que começara a cair de manhã e não parara ainda.
Entrei numa dos muitos enormes armazéns geridos por imigrantes chineses que vendem desde vernizes a tangas, passando por missangas, carteiras, canecas e coadores. Deambulei pelos corredores só a ver e, ao virar uma esquina, ouvi uma voz fininha de criança a perguntar:
- Como te chamas?
Parei a minha caminhada ao dar de caras com uma menina de olhos rasgados, cabelos negros muito lisos e repas caídas sobre as pestanas. Sentada numa montanha de tapetes coloridos e com os pés enfiados debaixo de um banco azul de plástico, dava trincas muito pequeninas numa fatia de pera e olhava-me atenta.
Respondi-lhe, pronta para seguir em frente a encher os olhos de molduras e caixas de madeira com nomes recortados.
Mas ela tinha um questionário improvisado à espera das minhas respostas. Num instante estávamos num diálogo complexo, ela numa voz de menina de cinco anos com um português ainda débil que ia intercalando com chinês (como ela própria lhe chamou) quando a mãe lhe gritava algo do fundo da loja.
A Bia era a mais nova de três filhos, mas não por muito tempo. Olhei para a mãe, com uma barriga ainda muito pouco notória, e senti uma vontade imensa de poder passar pelo mesmo que ela; de poder ter uma data de miúdos à minha volta numa fria tarde de sábado de outono.
Não pude perder-me muito tempo nos meus devaneios sobre se alguma vez virei a ser mãe – e que, verdade seja dita, não me levariam a conclusão nenhuma – porque a Bia passou a explicar-me que quem vai às compras deve sempre ter uma lista, para saber o que vai comprar. Entre risinhos e expressões envergonhadas de quem está a falar com uma estranha, contou-me que já sabe fazer o P maiúsculo e minúsculo, que passa os fins-de-semana na loja que também é a casa dela e que, às vezes, faz os trabalhos de casa e vê televisão.
A certa altura levantou-se, correu até ao final do corredor, para dizer algo ao irmão, riu-se, ofereceu-me uma fatia de pera, despediu-se de mim e voltou a sentar-se no monte de tapetes, com os pés debaixo do banco azul, a acabar de comer enquanto brincava com uma bola.
Ali estava eu, insatisfeita apesar de tantos projetos em mãos, de tantos filmes para ver, de tantos livros para ler, de tantas pessoas com quem conversar. E ali estava ela, entretida e divertida com o pouco que tinha, naquele momento, à disposição, sem parecer precisar de mais.

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